“Farto como estava de ser sozinho,
aprendera que família também se inventava.” (Valter Hugo Mãe)
Se quiser aprimorar a experiência de leitura com uma trilha sonora instrumental, aperte o play:
No primeiro sábado deste mês, participei de uma festa especial em Porto Alegre, idealizada por meu pai para celebrar a imigração de dois casais, que trouxeram há 100 anos, da Alemanha para o Brasil - mais especificamente para o Rio Grande do Sul, o sobrenome Albertin. Vou abrir um breve par de parênteses aqui para compartilhar uma curiosidade sobre mim: sou descendente de alemães e também nasci na Alemanha. Se sou alemã, então? Sim, mas muito mais brasileira!
Meu pai me pediu para desempenhar durante a festa o papel de celebrante ou mestra de cerimônia e, dois dias antes do evento, pediu-me também para preparar uma abertura para a ocasião. Coloquei-me imediatamente a refletir, perguntando a mim mesma como podia aproveitar o tempo e o espaço que me foram confiados para criar uma oportunidade de afetar e inspirar quem estivesse a me escutar naquele dia.
Como boa amante da poesia e da literatura, não demorei a lembrar a obra “O arroz de palma”, escrita por Francisco Azevedo, que guarda um trecho especial sobre família. Imagine minha surpresa ao descobrir, em seguida, que o livro foi o primeiro romance a abordar a imigração luso-brasileira no século XX! Era ou não era a obra perfeita para aquela ocasião?!
E assim foi: no início da festa, coloquei-me de pé diante de todas elas e todos eles, parentes minhas e parentes meus, para ler - e interpretar, é claro - o trecho que hoje compartilho também com você:
"Família é prato difícil de preparar.
São muitos ingredientes.
Reunir todos é um problema...
Não é para qualquer um.
Os truques, os segredos, o imprevisível.
Às vezes, dá até vontade de desistir...
Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite.
O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares.
Súbito, feito milagre, a família está servida.
Fulana sai a mais inteligente de todas.
Beltrano veio no ponto; é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade.
Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do tempo.
Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante.
Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe.
Ela, a mais apaixonada.
A outra, a mais consistente...
Já estão aí? Todos? Ótimo!
Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola.
Não se envergonhe de chorar.
Família é prato que emociona.
E a gente chora mesmo.
De alegria, de raiva ou de tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco.
Mas, se misturados com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar, tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa.
Atenção, também, com os pesos e as medidas.
Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre.
Família é prato extremamente sensível.
Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido.
Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional.
Principalmente na hora que se decide meter a colher.
Saber meter a colher é verdadeira arte.
Às vezes, o ídolo da família, o bonzinho, o bola cheia que sempre ajudou, azedou a comida só porque meteu a colher.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
Bobagem!
Tudo ilusão!
Família é afinidade, é à Moda da Casa.
E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces.
Outras, meio amargas.
Outras apimentadíssimas.
Há também as que não têm gosto de nada.
Seria assim, um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha.
Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo.
Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de família não se copia, se inventa.
A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia.
A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.
Muita coisa se perde na lembrança.
O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer.
Se puder saborear, saboreie.
Não ligue para etiquetas.
Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro.
Aproveite ao máximo.
Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete!”
Essa experiência, a festa somada às palavras do autor, convidaram-me a mais uma vez refletir sobre uma das instituições sociais mais relevantes na história de nossa humanidade: a família.
Sempre chama minha atenção em atendimentos de psicoterapia e também em minhas relações pessoais como são idealizadas as relação familiares e, consequentemente, como essas relações podem ser fonte de sofrimento…
Nos frustramos e nos culpamos quando as diferenças ou os conflitos, inevitáveis e frequentes, derrubam-nos do alto da idealização - ingênua e frágil, mas também perversa, aquela que nós mesmas criamos e insistimos em nutrir (na maioria das vezes sob influência das mais diversas crenças religiosas) para servir como um espelho que denuncia nossa suposta inadequação ou nosso suposto fracasso enquanto filha, mãe, irmã, esposa…
Como contei recentemente a quem me acompanha pelo Instagram (@larissa_albertin), durante muito tempo idealizei a relação entre irmãos. Por isso, nutria a expectativa de ter com meu irmão uma relação de amizade, confiança, cuidado e cumplicidade. Eu demandava dele um irmão que ele não pode ser, o que nos custou um bocado de frustrações e conflitos. Meu sofrimento só diminuiu quando passei a enfrentar a maior frustração: a de que não posso ter com ele a relação que eu gostaria de ter com um irmão, principalmente por causa das características e das limitações de cada um.
Por acaso está no sangue a afinidade, a confiança, a lealdade, a honra, o respeito e o amor? Vínculos sanguíneos não garantem boas relações. Se as garantissem, a família não seria palco para violências de toda ordem. Relações familiares, como quaisquer outras, não estão dadas; elas podem ser construídas.
E construir boas relações familiares, relações que favoreçam nossa saúde, nossa dignidade e nossa realização neste mundo, é tarefa extremamente desafiadora. Em “A bailarina de Auschwitz”, Edith Eger explicou parte do desafio:
“Transformamos até mesmo o entusiasmo e a segurança da família em uma espécie de prisão. Recorremos aos velhos mecanismos de enfrentamento e nos tornamos quem acreditamos que devemos ser para agradar os outros. É preciso ter força de vontade e escolher não recair nos papéis limitantes que erroneamente acreditamos que vão nos manter seguras e protegidas.”
Permita-se pensar por um momento nos familiares com quem convive e nas relações em que está com cada um deles: você aceita que sejam como podem ser? E essas relações, como podem ser, são relações em que você deseja permanecer?
Parentes são pessoas - cada um tem seus desejos, suas qualidades, suas crenças, suas limitações, suas necessidades, seus valores… Você não é obrigada a conviver com todas as pessoas, certo? Por que se obrigaria, então, a conviver com todos os parentes?
Esses questionamentos me remetem a uma das músicas mais sensíveis e corajosas que conheço: “Matilda”, de Harry Styles, que me foi apresentada por uma pessoa que tenho a honra e o prazer de acompanhar em psicoterapia há bons anos:
You don't have to go home
Oh, there's a long way to go
I don't believe that time will change your mind
In other words
I know they won't hurt you anymore as long as you can let them go
Você não precisa ir pra casa
Oh, há um longo caminho pela frente
Eu não acredito que o tempo vá mudar a sua cabeça
Em outras palavras
Eu sei que eles não vão mais te machucar, desde que você os deixe ir
Se a convivência se mostrar impossível ou indesejada e você os deixar ir, como Matilda, pode se inspirar em Crisóstomo, personagem de Valter Hugo Mãe, que
“Farto como estava de ser sozinho, aprendera que família também se inventava.”
Afinal, amigas e amigos não são a família que escolhemos?
Em alguns casos, a convivência com familiares, mesmo que não seja agradável, mostra-se possível e, mais importante do que isso, é desejada. Mesmo assim, ela pode demandar gestão de distância. A propósito, conhece a parábola do porco-espinho?
A parábola do porco-espinho é uma metáfora usada pelo filósofo Arthur Schopenhauer para se referir às dificuldades de convívio entre os seres humanos. Os porcos-espinho buscavam se proteger do inverno rigoroso no calor da companhia de outros. Mas, com a proximidade dos corpos, os espinhos lhe causavam feridas. Diante da dor, eles se afastavam. Com o aumento do frio, os animais voltavam a se juntar e, novamente, os espinhos os machucavam. Ou seja, isolados, o frio os ameaçava de extinção; mas, juntos, os espinhos os feriam.
Essa parábola se refere à convivência entre seres humanos, o que quer dizer que se refere também às relações familiares.
Com que prato sua família se parece? Com quais familiares você deseja e pode conviver? Qual relação é possível com cada familiar? Qual é a distância que precisa existir entre você e sua família para que você não seja ferida pela solidão nem pelos espinhos? É necessário ou desejável deixá-los ir?
Com respeito e afetos,
Larissa.
Espero que este Convite tenha sido para você uma oportunidade bonita de se deixar afetar e tomar um novo fôlego!
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Uma ótima maneira de começar meu domingo!. Você sempre me afeta e me emociona com os convites.
Beijos cheios de carinho e admiração..