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No mês passado, voltei a uma das cidades onde mais gostei de morar: Belo Horizonte - Beagá ou Belô para as mais íntimas. Vivenciei lá três dos ciclos mais importantes de minha vida: a mobilidade acadêmica entre as faculdades de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e de Minas Gerais (UFMG), o mestrado em Psicologia na UFMG e, por último, o início de minha carreira clínica como psicoterapeuta. Devo a essas experiências, principalmente à primeira e à segunda, a construção de alguns dos meus valores mais fortes, como responsabilidade, humildade e respeito. Imagine, então, como foi para mim voltar a essa cidade, onde não colocava meus pés desde aquele fatídico março de 2020…
Eu sinto carinho pela cidade, mas não foi pela cidade que voltei; foi pelas pessoas que lá deixei. Em Belo Horizonte estão algumas das pessoas que mais admiro e amo, com quem comecei a aprender a olhar para mim mesma e para os outros com sensibilidade, criticidade e humildade. Sou grata pelas mudanças que nossos encontros motivaram em mim e me orgulho de como me deixei atravessar por elas. Aquelas com quem me encontrei no mês passado abracei forte e várias vezes - alguns desses abraços foram acompanhados de lágrimas imensas, porque imensa era também a saudade que cultivava em meu peito há mais de três anos.
Fui embora da capital mineira com a sensação de ter me reabastecido de amor, como se meu corpo estivesse revigorado pelos afetos vivenciados nos últimos dias. Junto a essa sensação, chegou um questionamento:
o que ganho ao morar fisicamente longe de quem eu amo é mais importante do que aquilo que perco?
Morar em Santa Catarina implica para mim estar distante de familiares, amigas e amigos. Mas, no meu caso, não seria fácil estar com essas pessoas: como estão em Estados diferentes do Brasil e em outros países, eu precisaria escolher alguma delas ou algumas em detrimento de outras. Para mim não é possível reunir em um mesmo lugar todas as relações familiares, tampouco todas as amizades.
Nunca foi, aliás; desde meu nascimento estou longe de alguém. Nasci distante do Brasil, onde estavam meus parentes, que meus pais me apresentariam um ano depois. No Brasil, fui criada na mesma cidade em que morava boa parte da família nuclear de meu pai, mas em um Estado diferente daquele em que estava (e está ainda) a família nuclear de minha mãe. Depois, me mudei com meus pais e meu irmão para o Nordeste, onde não havia nenhum parente a nos esperar nem qualquer amiga minha - todas as amizades que eu havia criado até ali estavam no Rio Grande do Sul. Assim foi também durante meu intercâmbio estudantil mais longo: na Alemanha, durante sete meses, não houve ao meu redor nenhum parente ou amiga em que pudesse me amparar. Mais tarde, deixei no Nordeste um namorado de longa data, meu pai e algumas boas amigas para estudar em Minas Gerais, onde estava minha mãe e sua família nuclear, onde mais uma vez nenhuma amiga estava presente fisicamente. E não é que, chegada a pandemia, fiz isso de novo? Junto com meu companheiro, vim para Florianópolis e, dois meses depois, decidi permanecer aqui por tempo indeterminado, ciente de que não havia nesta Ilha nenhum parente ou amigo - nem do meu lado, nem do dele. Curioso é que em nenhum desses momentos me senti sozinha, o que explica Liliane Prata:
Se nossa existência no mundo é acompanhada, nossa liberdade também o é.
Em alguns momentos, contudo, pergunto a mim mesma se é hora de voltar. Mas voltar para onde? Voltar para casa não é possível; eu já estou em casa, eu sou minha casa. Como disse o personagem Avô Mariano,
O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora.
Recentemente, uma pessoa querida me surpreendeu quando perguntou de repente: “Você não tem raízes, não é?”. Foi uma pergunta retórica. Mas, como respondi a ela, acredito que as tenho, sim. Mas as minhas raízes não estão em um lugar só, como talvez estejam as raízes da maioria de vocês. Minhas raízes estão em muitos lugares; é que eu as crio e deixo por onde passo.
Em outros momentos, quando sinto o relacionamento com meu companheiro ameaçado e, por isso, começo a me imaginar solteira, não é um retorno para a casa de meu pai ou de minha mãe que imagino. Na verdade, sequer me imagino morando em uma das cidades onde moram familiares, amigas e amigos. O que imagino são novos movimentos para mim, que unem a curiosidade por morar sozinha pela primeira vez e o desejo de conhecer ainda mais do mundo.
Eu já estava em Florianópolis de novo, após a estadia em Minas Gerais, quando uma amiga, que também está longe dos seus por uma decisão sua, perguntou: “Como você tem atribuído sentido à decisão de morar em Florianópolis?”. A pergunta dela me remeteu ao mesmo questionamento de outrora: o que ganho ao morar fisicamente longe de quem eu amo é mais importante do que aquilo que perco?
O sentido que atribuo à escolha desta Ilha para chamar de lar: ela me convida, diariamente, a viver Devagar, cultivando um estilo de vida por meio do qual honro outros dos meus valores mais fortes: liberdade, integridade e sustentabilidade. Além disso, meu desejo de vivenciar movimentos e mudanças é atualmente maior do que meu desejo de estar fisicamente próxima de meus amores, espalhados por aí. Como a personagem de Itamar Vieira Júnior em Torto Arado, quero experimentar a vida para ver o que pode me acontecer.
Quando me refiro a esses amores, estou me referindo a pessoas que tomo como outras casas minhas. Casas que me servem como mastros ou pálpebras, como disse Khalil Gibran:
Sua casa não deve ser uma âncora, mas, sim, um mastro. Não deve ser a membrana cintilante que cobre a ferida, mas a pálpebra que protege o olho.
O entorno muda, e nós mudamos também. Mudam nossos desejos, nossos valores, nossas necessidades, nossas crenças… Por isso é preciso frequentemente revisitar as decisões e escolhas em curso, aquelas que nos orientam, seja para reforçá-las, para adaptá-las ou mesmo para abandoná-las, pois, como li no livro “Essencialismo”,
Se não escolhemos conscientemente no que concentrar nosso tempo e nossa energia, os outros - chefes, colegas, clientes e até a família - escolhem por nós, e logo perdemos de vista tudo o que é significativo. Ao abrirmos mão de fazer as escolhas, permitimos que os interesses alheios controlem a nossa vida. (Greg McKeown)
Antes de flexibilidade e coragem, essa postura demanda presença, consciência, atenção, observação e intenção. Por isso eu vivo Devagar. Se não vivesse assim, como poderia me dar conta de quem já deixei de ser, de quem sou e de quem desejo me tornar? Como escreveu o autor do livro “Devagar”,
A grande vantagem de desacelerar é recuperar o tempo e a tranquilidade necessários para estabelecer nexos importantes para nós - com pessoas, com a cultura, com o trabalho, com a natureza, com nossos próprios corpos e mentes. Há quem chame isto de viver melhor. (Carl Honoré)
O que estou priorizando? Em detrimento de quê? Ainda sou capaz de atribuir sentido ao lugar onde moro? E às relações que cultivo, ao trabalho que realizo…? O que e como estou vivendo é coerente com meus valores e meus desejos? Faço a mim mesma essas perguntas com frequência, principalmente quando não me sinto realizada. O que aconteceria se você se dispusesse a respondê-las agora?
É no corpo, no amor e na liberdade de escolher as coisas que a gente fica inteiro ou despedaçado. (Carla Madeira)
Com respeito e afetos,
Larissa.
Que texto mais lindo, Larissa . Amei💚