"O real não está na saída nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia." (Guimarães Rosa)
Se quiser aprimorar a experiência de leitura com uma trilha sonora instrumental, aperte o play:
Eu não sei se você está parada ou se está se movimentando. Se estiver se movimentando, também não sei se você está caminhando ou correndo. Você sabe? Mas posso apostar que você está pelo menos tentando se movimentar e que está olhando para a frente. Imagino que você está vendo um lugar em que você deseja chegar – ou um lugar em que você deve chegar?
Enquanto você olha para a frente, o que mobiliza seu olhar é um desejo genuíno ou um suposto dever?
E o que há nesse lugar à sua frente? Em outras palavras, o que você está buscando? Você poderia me responder: um título, um casamento, o status, uma nota, um diploma, o dinheiro, uma gravidez, um cargo, um apartamento, a estabilidade, uma promoção, o reconhecimento, uma herança, a fama, um emprego, o sucesso, uma viagem, o perdão, a segurança... Aliás, você sabe o que está buscando? Está nítido ou embaçado aquilo em que você mira?
De qualquer forma, cá entre nós, não se trata de nada disso no final das contas. Trata-se, sim, da promessa inscrita naquilo que você busca: a felicidade, o prazer, o sentido, a paz, o amor...
Que promessa deve se cumprir quando você alcançar aquilo que está buscando? Como você espera se sentir quando chegar no lugar à frente, para o qual você está olhando?
A atriz Viola, por exemplo, como contou para Oprah em uma entrevista recente promovida pela Netflix, nos contaria o seguinte:
“Tinha a sensação de que, ao chegar lá, ao chegar ao topo, minha vida iria se abrir de alguma forma. De repente, eu teria uma sensação do tipo ‘eu venci, sei qual é o significado da minha vida’ e os céus se abririam e Deus cantaria… E eu viveria o resto da minha vida com alegria e paz, como a Cinderela, quando o príncipe encantado chega. E isso não aconteceu.”
Mas, enquanto você olha para a frente e vê o lugar em que você gostaria de chegar, aquele que promete o que você deseja sentir, onde você está? Já experimentou olhar para trás, para baixo, para cima e para os lados? O que você vê? Como você se sente agora, no lugar em que é possível estar? Há alguém com você enquanto você não é quem pretende se tornar?
Também posso apostar que você, assim como eu, sente-se frequentemente cansada e, nesse cansaço, sozinha. É que, olhando para frente, não nos permitimos fechar os olhos para descansar nem podemos ver quem está ao nosso lado. Se Byung-chul Han estivesse aqui, já teria me pedido a palavra para nos falar sobre “A sociedade do cansaço”. Ele diria:
“O cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando.”
E para dentro, você já olhou? Experimente olhar para dentro agora: algo mudou? Agora olhe de novo para aquele lugar à frente: ainda é para lá que você deseja ir?
Se por acaso o medo estremecer seu corpo quando você se der conta de que seu desejo aponta para uma direção diferente daquela para onde aponta o dever que você abraçou, deixe que eu lhe diga em seus ouvidos – baixinho, quase como um segredo nosso - o mesmo que me disse André Gide enquanto eu lia “Os frutos da Terra”:
“Toda escolha é assustadora quando nela se pensa: assustadora uma liberdade que um dever não guia mais.”
A vida é tudo aquilo que acontece enquanto você nega sua liberdade e sua autonomia, enquanto não se permite outros olhares. Ela não pede que o tempo espere até que você deixe de olhar para frente. O tempo não espera até que você honre sua história, celebre seus processos e suas experiências, sinta os afetos em seu corpo, orgulhe-se de quem é, ame quem está contigo, mude a direção…
Se Lenine estivesse nesta nossa conversa agora, com Paciência, cantaria para nós:
“Será que é o tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara, tão raraMesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não”
No balanço de Lenine, eu te pergunto o que pergunto a mim mesma vez ou outra: se não houver outra vida, esta você viveu?
A todo momento, até mesmo antes que você chegue aquele lugar, a vida pode se retirar: ameaçadora, ela olha no fundo dos teus olhos e dá um passo para trás enquanto segura um espelho virado para você, perguntando sem dizer nem uma palavra: Quem é você?
Essa pergunta me remete ao aviso carinhoso que me deu Liliane Prata em “O mundo que habita em nós”:
“Se estou muito focado na pessoa que eu gostaria de ser, não estou concentrado em quem sou.”
Nas últimas semanas, estivemos eu e meu companheiro, olhando para frente. Esperávamos por uma prova e, depois, por um resultado – um resultado que, como gostamos de esperançar, poderia colocar fim a um ciclo que há dois anos tem desafiado os limites da nossa saúde mental e a força do nosso relacionamento. Dois dias antes da prova, porém, consegui olhar também para trás, para baixo, para cima e para os lados. Assim como Belonísia (personagem de Itamar Vieira Júnior em “Torto arado”),
“Fiquei atenta a tudo o que acontecia, sabia que nada retornaria. Olhei com certo encantamento o tempo caminhando, indomável como um cavalo bravio.”
Então, chorei, lembrando os momentos mais difíceis que atravessamos até aqui. Com as lágrimas ainda quentes no rosto, convidei meu companheiro a celebrar o processo que estávamos vivenciando naquele momento, antes que ele fizesse a prova. E fizemos o mesmo depois da prova, antes de receber qualquer resultado. Celebramos nossa história, nossa resiliência, nosso amor, nossa coragem, nossa espiritualidade, aquela oportunidade e, principalmente, nossa saúde.
O processo; o que perdemos quando nos deixamos seduzir pelo resultado? O trajeto; o que perdemos enquanto olhamos para a linha de chegada? A experiência; o que perdemos quando atribuímos o maior peso à performance ou ao desempenho? A realização e o prazer; o que perdemos quando o dever se sobrepõe ao desejo? A vida; o que perdemos quando perdemos de vista o presente?
Que sejam dignas de celebração nossas experiências a despeito de qualquer performance e desempenho, cobrados pelo neoliberalismo. Que sejam motivo de celebração não só os resultados objetivos e materiais, mas também os subjetivos, aqueles que não podem ser vistos ou medidos, mas que podem ser sentidos, percebidos e testemunhados. Que se celebre a saúde, a coragem, a tomada de decisão, a iniciativa, a resiliência, a esperança, a fé, as relações, a criatividade, a honestidade, a dedicação, o comprometimento, a sensibilidade, o desejo, a mudança, o amor... O que mais? Que celebremos não só o lugar em que desejamos chegar, mas o lugar de onde viemos e o lugar onde estamos. Celebremos não só quem pretendemos nos tornar, mas quem fomos e, sobretudo, quem somos, assim como quem está conosco.
Guimarães está agora me pedindo, por meio de arrepios em meu corpo, que, antes de me despedir, compartilhe com você uma das mensagens mais bonitas do Sertão:
O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
Quais são suas travessias?
Com respeito e afeto(s),
Larissa.
O mais simples por vezes se torna o mais desafiador: ser quem é e estar exatamente onde estamos. Obrigada por tanta troca, seu texto mais uma vez me tocou e chamou de volta meus sentimentos para onde importa!