"Que a liberdade seja a nossa própria substância,
já que viver é ser livre." (Simone de Beauvoir)
Se quiser aprimorar a experiência de leitura com uma trilha sonora instrumental, aperte o play:
Você sente medo?
Eu também. Ora, há quem não o sinta?
O que nos diferencia não é a presença ou a ausência do medo, mas o que cada uma e cada um decide fazer diante dele: recuar ou avançar. Tenho pra mim que tanto a covardia quanto a coragem pode ser uma resposta legítima frente ao medo.
É verdade que a cultura já atribuiu à covardia um tom pejorativo. Mas, pela força de um hábito caro de desconstruir o que está dado, questiono: será que vez ou outra a covardia não é importante ou até necessária? Um salto demanda impulso. E como se toma impulso? Por exemplo, dando um passo para trás, recuando. A covardia pode ser justamente o passo para trás; a covardia, portanto, pode servir a um impulso.
Mas pode ser que em alguns (ou muitos) momentos você se decida pela covardia para se proteger – da decepção, de uma escolha ruim, da frustração, de um trauma, da traição, da verdade, do erro, da perda... No final das contas, é o sofrimento que você está tentando evitar, não é?
Pode ser que você seja como Lóri, uma das personagens de Clarice Lispector, que
a vida inteira tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor.
Lóri sabia que não é possível ser grande sem ter dor. Você deseja ser grande em algum aspecto? Se o desejar, ao contrário de Lóri, terá de acolher a dor e seguir o conselho de Fernando Pessoa:
Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa.
Na tentativa de evitar o sofrimento, o que mais você tem evitado? Ao recuar diante do medo para se proteger, do que você tem se privado? De quantas experiências você já abriu mão para não sofrer?
E como é viver tão pouco? Inibindo-se assim, você já não está em sofrimento?
Maria Bethânia responderia que sim, nos cantando “Prudência”:
Mas longe de qualquer perigo eu me afundo num tédio
Que vida vazia sem nenhum mistério
Na dura apatia de um controlador
Gal Costa, no mesmo sentido, sempre continuará a nos cantar que é preciso respeitar também as nossas lágrimas, ainda que respeitemos mais nossa risada.
Até porque não há como deixar de sentir uma coisa só. A recusa em sentir tristeza, por exemplo, implicará aos poucos a recusa em sentir também a alegria, assim como todo e qualquer afeto. É o que conhecemos por dessenssibilização.
Se pudesse nos escutar agora, Khalil Gibran puxaria uma cadeira, juntando-se a nós nessa prosa para nos lembrar o que escreveu em sua obra “O Profeta”:
Quanto mais fundo em seu interior a tristeza abre caminho, mais espaço se cria para a alegria.
Clarice Lispector, se pudesse escutá-lo também, concordaria, dizendo que
quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria.
E por que você se protege tanto do sofrimento, afinal? Por acaso não sabe ainda que a tristeza faz parte da vida da mesma forma que a alegria?
Pode ser também que você não se sinta capaz de sobreviver ao sofrimento. Então, dê uma olhadinha aí dentro: você não tem recursos suficientes para sustentar a dor e atravessá-la? Eu aposto que tem. Você pode apostar em si mesma também?
Para te motivar a fazer essa aposta, gostaria de dar a você o mesmo conselho que André Guide deu a Nathanael em “Os Frutos da Terra”:
Que toda emoção te possa ser uma embriaguez. Se o que comes não te embriaga, é que não tens muita fome.
Parafraseando os Titãs, você tem muita fome de quê?
Agora quero te convidar a olhar noutra direção, menos óbvia: e se não for a tristeza que você evita, mas a alegria? E se aquilo que te amedronta é na verdade o sucesso, o prazer, a realização, o reconhecimento e o orgulho, por exemplo? Será por isso que você se acovarda?
Sentir-se capaz de construir e vivenciar tudo isso pode colocar em xeque seu autoconceito, caso em alguma parte sua ainda esteja guardada a crença de que você não é capaz de ser bem-sucedida, de que não é digna de ser amada, de que não é merecedora de sentir prazer…
Se nada disso for verdade, quem é você, então? Isso pode ser angustiante...
Se nada disso for verdade, quem você deseja ser, então? Isso pode ser libertador.
Se estivesse entre nós agora, Simone de Beauvoir proporia que repetíssemos juntas, a uma só voz, como um mantra:
Que nada nos defina, que nada nos sujeite.
Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre.
Eu sigo: que possamos recuar e avançar, atribuindo sentido à nossa coragem, mas também ao nosso medo, legitimando ambos; que possamos nos movimentar apesar do medo ou com ele, nutrindo a fé na nossa capacidade de sustentar e atravessar o sofrimento, reinventando-nos; que possamos nos sentir capazes, dignas e merecedoras para vivenciar mais do que temos acreditado ser possível ou devido.
Com respeito e afeto(s),
Larissa.