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Nas duas últimas semanas de 2023 e na primeira semana de 2024, estive no Sul de Minas Gerais, em uma cidadezinha pacata pela qual sinto imenso carinho: São Gonçalo do Sapucaí. Ela é a caricatura do interior de Minas: a igreja matriz, a pamonha, a calçada estreita, o biscoito de polvilho, o canto do galo ao amanhecer, o legítimo pão de queijo, as plantações de café, as mesas fartas, a goiabada, o som dos sinos da igreja, os queijos, as montanhas, o bolo de fubá… Lá moraram meus avós maternos. Lá moram atualmente minha mãe e os pais do meu companheiro.
Certo dia, enquanto caminhava sozinha pelas ruas dessa pequena cidade, com os pensamentos soltos de quem está de férias, me peguei pensando nos rumos que minha vida poderia ter tomado caso eu não tivesse exercido minha autonomia - e minha coragem - para tomar decisões importantes. Algumas delas, recentes, se conectam com essa cidadezinha:
Eu já fiz morada em São Gonçalo do Sapucaí duas vezes. Quando estava concluindo minha pesquisa de Mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais, deixei o apartamento no qual morava em Belo Horizonte e me mudei para a cidadezinha, para a casa onde moravam naquela época minha avó e minha mãe. Durante sete meses morei com elas. Nesse período, fiz os últimos ajustes na minha dissertação, defendi minha pesquisa e finalmente me tornei Mestra. Depois, ainda permaneci na cidadezinha para descansar e recuperar minha saúde, porque o Mestrado foi uma experiência traumática para mim. Meu próximo passo era voltar para Fortaleza, onde me formei em Psicologia antes de me mudar para Belo Horizonte. Lá me esperava um rapaz com quem eu namorava há quase dez anos. Voltando para o Ceará, eu passaria a morar com ele, me casaria e daria início à minha carreira clínica. Mas eu não dei esse passo. Decidi desfazer esse plano. Até voltei para Fortaleza, mas com outra intenção: pessoalmente, coloquei um ponto final naquele namoro, no qual eu não cabia mais sem um grande esforço. Essa foi uma das decisões mais difíceis que tomei até aqui. Se houve arrependimento? Nem por um segundo.
Depois, eu poderia ter voltado para a cidadezinha e ter iniciado no interior de Minas minha carreira clínica. Existia um contexto favorável para isso: poucas profissionais de Psicologia qualificadas no lugar e, ao mesmo tempo, uma demanda significativa por psicoterapia. Além disso, as relações de minha mãe e minha avó poderiam me servir como trampolim. Nem preciso comentar como seria econômico e confortável morar com elas de novo, não é? Mas àquela altura eu já tinha aprendido que o caminho aparentemente mais fácil não é necessariamente o melhor. Então, desejando um pouco mais de espaço, privacidade e possibilidades para me movimentar profissionalmente e pessoalmente, decidi voltar a morar em Belo Horizonte. Foi na capital de Minas que comecei a trabalhar no âmbito da Psicologia Clínica, como psicoterapeuta, e também onde fiz minha primeira formação em Gestalt-terapia.
Nos primeiros meses, os atendimentos aconteciam apenas em Belo Horizonte. Passado algum tempo, passei a atender também na cidadezinha, quinzenalmente. Isso significa que, quinzenalmente, eu enfrentava cerca de dez horas na estrada para ir a São Gonçalo do Sapucaí e voltar a Belo Horizonte. Como se não bastasse esse vai e vem terrestre, eu passei a fazer parte da ponte aérea Belo Horizonte - São Paulo. Será que você adivinha por quê? Sim, um novo amor, um novo relacionamento à distância… A nova rotina de trabalho somada a tantas viagens de carro e avião era extenuante. Mas o que eu podia fazer? Eu precisava permanecer onde estavam minhas clientes e meus clientes de psicoterapia, nas cidades em que alugava salas para realizar os atendimentos; eu precisava fazer “meu nome” como Psicóloga em algum lugar. Pelo menos era nisso que eu acreditava. Então, passivamente, eu aguardava que meu novo amor encontrasse um emprego perto de onde eu morava. Uma pandemia foi necessária para que eu vislumbrasse e adotasse outra forma de viver. Durante o isolamento, eu e meu namorado adotamos uma modalidade de trabalho que até então eu rejeitava veementemente: remota. Ele, empregado, foi convocado a fazê-lo. Eu, autônoma, decidi fazê-lo. Trabalhando assim, moramos durante alguns meses de isolamento na cidadezinha - eu, novamente com minha mãe e avó; ele, com seus pais. Não demorou para eu me deparar com a possibilidade de continuar trabalhando com a modalidade remota de psicoterapia. A liberdade geográfica atrelada a essa possibilidade me capturou. Então, decidi abrir mão do apartamento e das duas salas de atendimento que alugava. Assim que o fiz, me vi livre para morar e trabalhar onde quisesse.
O plano mais óbvio era me mudar para São Paulo para passar a morar com meu namorado onde ele voltaria a trabalhar presencialmente, ao final da pandemia. Poderíamos ter continuado na cidadezinha até isso acontecer, não é? Mas eu decidi convidá-lo a passar uma pequena temporada em uma cidade de praia enquanto estávamos os dois em home office. Convite aceito, foi assim que conhecemos Florianópolis e, graças a uma decisão dele (a demissão da empresa em que ele trabalhava), abandonamos juntos o plano mais óbvio para permanecer na Ilha da Magia por tempo indeterminado.
Não posso deixar que você termine de ler essa história sem observar os inúmeros privilégios que a atravessam, especialmente os meus. Se, não por acaso, sua história também for atravessada por um punhado deles, te convido a se valer dos rituais que acompanham o início de um novo ano para perceber que rumo sua vida está tomando e questioná-lo. Caso ele não seja coerente com os desejos e os valores que te mobilizam no momento, tomo a liberdade de perguntar: qual decisão sua teria força suficiente para recriá-lo?
Cora Coralina nos diria agora:
Não te deixes destruir
Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas
Recria tua vida, sempre, sempre
Remove pedras e planta roseiras e faz doces
Recomeça.
Espero que este seja um Convite para tomarmos nossas vidas nas mãos e recriá-la quantas vezes for preciso ou desejado.
Com respeito e afetos,
Larissa Albertin.
Amei, dessa vez, ouvir o "Convite". Beijo.
Amei ler 🧡 e Cora Coralina é incrível! Bom domingo, Larissa!