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Desde que retomei os atendimentos de psicoterapia, na primeira semana deste novo ano, muitas das pessoas a quem ofereci minha escuta me contaram como vivenciaram o período entre o Natal e a virada de ano.
Não me surpreendeu desta vez como podem ser desagradáveis ou mesmo sofridos os momentos em família, nem como podem se sentir inadequadas ou mesmo fracassadas as pessoas que não se sentem alegres nesse período. Mas foi impactante pra mim perceber - mais uma vez - como pode ser opressora uma cultura que dita a todas as pessoas como deve ser vivenciado um ciclo que se encerra e outro que se inicia, ignorando o contexto e as particularidades de cada uma.
Tudo começa com a famigerada pergunta “O que você fez?”, na voz de Simone. Só eu identifico entre essas quatro palavras um quê de cobrança?
A partir daí, me parece que a retrospectiva deve ser feita de modo a contabilizar feitos, enquanto novas metas devem ser traçadas de maneira objetiva e específica. É tudo sobre produtividade, não é? O neoliberalismo nosso de cada dia. Nos pergunto, então:
E se a retrospectiva fosse orientada por experiências? E se a gente não precisar de novas metas neste momento? E se o ano não precisar ser avaliado, mas lembrado, acolhido e celebrado? E se não estivermos disponíveis emocionalmente para novas metas agora? E se não importassem os números na retrospectiva, mas os afetos?
Eu mesma já me senti um peixinho fora d’água nesse período do ano, porque há algum tempo não me agrada a ideia de planejar minha vida - muito menos a ideia de planejá-la detalhadamente - para não dizer obsessivamente, como observo tantas pessoas fazerem.
Durante minha infância e minha adolescência, incontáveis vezes tive de responder a meu pai onde e como estaria em cinco ou em dez anos. Naquela época, essas perguntas já me incomodavam. Me sentia inadequada por não saber respondê-las. Demorei um pouco a perceber que não precisava nem queria respondê-las.
Meus planejamentos me traziam mais frustrações do que qualquer outra coisa. É que, ao planejar, muitas vezes me entregava à uma ingenuidade confortável, aquela de quem acredita ter a vida sobre controle, negando ou subestimando a força avassaladora dos inevitáveis imprevistos. Além disso, como a disciplina é para mim um caminho fácil a trilhar, o planejamento, além de me iludir, me enrijecia, o que me trazia muito sofrimento.
Como gosto de dizer, as melhores experiências que tive não foram frutos de um planejamento; vieram de oportunidades que percebi e abracei. Isso não quer dizer que eu não planeje uma coisa ou outra, é claro - a aposentadoria da autônoma, por exemplo, já está sendo construída. Mas, ao invés de me planejar, prefiro dedicar meu tempo e minha energia para me desenvolver em termos de presença, abertura, atenção, fluidez, espontaneidade, criatividade, autenticidade, flexibilidade e coragem. Até porque o que a vida quer da gente é coragem, não é?
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (Guimarães Rosa)
Se não elaborei metas para este ano, então? Não, não o fiz. Sabendo que “a vida é deriva”, como escreveu Carla Madeira, me basta trazer à consciência, todos os dias, com quais desejos e valores estou vivendo. A partir deles, adentro um novo ciclo com intenções, aquelas que norteiam meus passos e os abraços que dou ou deixo de dar nas oportunidades que me encontram.
“Todas as coisas que nos unem e fazem a vida valer a pena - comunidade, família, amizade - dependem para prosperar exatamente daquilo que nunca dispomos em quantidade suficiente: tempo.” (Carl Honoré)
Por pouco não concordo com o autor: sinto que temos tempo suficiente, sim; o que a maioria de nós não tem atualmente é disponibilidade. Concorda? Por isso, trouxe comigo a 2023 uma firme intenção: viver ainda mais Devagar para ter disponibilidade.
Como nos lembra Ana Cláudia Arantes, “não é possível segurar o tempo. Em relação a ele, a única coisa de que podemos nos apropriar é a experiência que ele nos permite construir sem parar”.
Pois bem, eu desejo me sentir fisicamente e emocionalmente disponível para construir experiências: estar com as pessoas que amo, movimentar meu corpo, ler, me conhecer melhor, brincar com o Bituca, declamar poesia, exercer minha autonomia, desfrutar da companhia do Guto, meditar, me nutrir e hidratar, contemplar a natureza, trabalhar, viajar… Há mais uma coisa: desejo estar disponível para me perceber porto seguro para novos sonhos,
“Porque às vezes eles, os sonhos, chegam distraídos, sem parecer sonho, e a gente sem se saber porto. Se preparar para acolher: os despreparos que um sonho traz e se preparar para acolher os nossos despreparos. Sim, ser porto, mas também ser mar imenso, ao mesmo tempo. Isso me faz pensar que quando um sonho se anuncia no horizonte uma parte da gente também se anuncia (aqui do lado de dentro) para ancorá-lo. Um porto pode ser tão seguro como um abraço, e isso é tudo que o que nós e os nossos sonhos precisamos receber (de nós mesmos) quando nos encontrarmos pelo caminho.” (Lucas Lopes)
Há algo que você queira planejar agora, afinal?
Com quais desejos e valores você adentrou este novo ano?
Quais são suas intenções?
Você está disponível para vivenciá-las?
Com respeito e afetos,
Larissa.